Como nazistas procurados tiveram uma ‘nova vida’ na América do Sul

Os livros ‘Surazo’ e ‘Baviera Tropical’ investigam como criminosos de guerra encontraram abrigo, paz e até a liberdade para cometer novas torturas e assassinatos em outro continente após a derrota da Alemanha nazista

Nos anos 1970, na divisa entre São Paulo e Diadema, um homem chamado Peter – ou Seu Pedro – mudou-se para uma casa à beira da Represa Billings. Lá, revezava-se entre consertar o telhado, dar ordens ao jardineiro para aparar as plantas no quintal, escrever cartas e ler livros em uma vida discreta e reclusa.

Cerca de uma década antes, um conterrâneo de Pedro se mudou para a Bolívia e vivia uma rotina oposta. Don Klaus Altmann foi catapultado a um quadro estratégico para a diplomacia e economia bolivianas. Os caminhos dos dois não se cruzaram por aqui, mas tinham um laço violento em comum:eram nazistas disfarçados na América do Sul.

Após a Segunda Guerra Mundial, a fuga de nazistas para nosso continente gerou incontáveis teorias da conspiração, séries, filmes e livros que retratavam, por exemplo, o mito de Adolf Hitler ter sobrevivido ao escapar para a Argentina.

Na Europa, se propagava a ideia da Odessa: uma suposta rota de fuga oficial criada para livrar os nazistas de serem presos e condenados. A lenda há muito foi descartada, mas uma pequena parte dessa história é verdadeira.

No Brasil, a vida de oficiais nazistas já foi retratada em livros como Nazistas entre nós: a trajetória dos oficiais de Hitler depois da guerra (Contexto), do historiador Marcos Guterman. Premiado com um Jabuti em 2017, o livro denuncia o acobertamento de vizinhos e amigos e a vida pacata desfrutada por carrascos nazistas em vários cantos do mundo. Muitos deles, sob disfarces, novos nomes e documentos falsificados.

Em La Paz, Don Klaus Altmann, por exemplo era, na realidade, o torturador nazista Klaus Barbie. Já Pedro, que fazia consultas médicas, recebia visitas do filho e de amigos, era a identidade falsa do pseudocientista Josef Mengele, autor de experimentos brutais contra judeus e ciganos nos campos de concentração de Auschwitz.

No livro Surazo (Manjuba), lançado em maio, a austríaca Karin Harrasser descreve como Klaus Barbie se infiltrou na Bolívia, orquestrou assassinatos, torturas e concedeu serviços paramilitares aos primeiros carteis de drogas da região.

Com passaporte diplomático, geria negócios como a companhia de transporte “Transmaritima” desde o fim da década de 1960. O negócio se aproveitava da campanha nacionalista para abastecer os desejos autoritários dos ditadores bolivianos, como Hugo Banzer, em restabelecer a saída boliviana para o mar, perdida para o Chile, em 1884.

Era o cinegrafista Hans Ertl, um montanhista considerado talentoso, que se mudou da Alemanha para criar gado nos “recônditos da floresta tropical”. Hans também havia sido um oficial nazista e continuava a frequentar os círculos da colônia alemã no novo país. Entre os amigos no novo país, eKlaus Barbie.

A investigação da autora começou com interesse em missões jesuíticas alemãs na Bolívia, mas durante a pesquisa se surpreendeu com um vídeo encontrado no YouTube: um homem com barbas e cabelos brancos, um jeito excêntrico e um “ar oculto”.

Era o cinegrafista Hans Ertl, um montanhista considerado talentoso, que se mudou da Alemanha para criar gado nos “recônditos da floresta tropical”. Hans também havia sido um oficial nazista e continuava a frequentar os círculos da colônia alemã no novo país. Entre os amigos no novo país, estava Klaus Barbie.

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Apesar de ter precisado responder e depor frente a uma comissão, Hans Ertl saiu da Alemanha, foi proibido de trabalhar no pós-guerra, mas manteve-se por meio de fotorreportagens para uma revista. Em 12 de maio de 1973, Hans saiu do sossego com a informação de que a filha, Monika Ertl, havia sido executada aos 35 anos em La Paz.

A execução foi ordenada por Banzer, a quem Barbie seguia fervorosamente, após Monika participar da guerrilha armada Ejército de Liberácion Nacional (ELN) ser acusada de matar a tiros o funcionário do consulado boliviano em Hamburgo, Roberto Quintanilla, em Hamburgo, na Alemanha, em 1971. Ironicamente, Hans era vizinho de Banzer na província boliviana de Chiquitania.

Entre 2017 e 2020 foi instaurada uma comissão da verdade que documentou, em seu último relatório preliminar, 130 casos comprovados de assassinatos políticos, torturas e desaparecimentos. A maioria desses casos é atribuída ao primeiro governo de Banzer (1971–1978), quando Barbie intensificou as execuções de combate às insurgências comunistas.

As vítimas da ditadura não eram apenas insurgentes armados e membros da guerrilha boliviana como Monika, mas também oposicionistas, estudantes, professores e religiosos de esquerda. Segundo a autora, a radicalização dos grupos armados foi resultado da presença dos nazistas na região, dos regimes autoritários na América Latina e também com a morte de líderes comunistas do continente sul-americano, como Che Guevara, executado na própria Bolívia em 1967.

Segundo a autora, as mulheres guerrilheiras, como Monika, eram tratadas com ainda mais brutalidade pelo regime. “Os filhos delas eram usados para pressioná-las durante interrogatórios. Era comum que guerrilheiras abandonassem os filhos com os avós e amigos”, diz Harrasser.

O ‘anjo da morte’ no Brasil

Enquanto isso, no Brasil, Josef Mengele se manteve ”sempre um passo à frente” dos serviços de inteligência que tentavam capturar nazistas e levá-los aos tribunais do recém-criado estado de Israel, afirma a jornalista Betina Anton.

A autora de Baviera Tropical (Todavia), lançado em novembro de 2023, mostra como Mengele deixou o bigode crescer para despistar suspeitas, frequentava uma livraria alemã no bairro do Santo Amaro e fazia pequenas compras até morrer afogado – e impune – em uma praia de Bertioga, em 1979.

A história começa quando Betina descobre que uma insuspeita professora do colégio alemão onde estudava, também em Santo Amaro, havia acobertado e escondido a verdadeira identidade de Mengele até a verdade vir à tona.

Sob o nome falso de Wolfgang Gerhard, o corpo de Mengele foi sepultado em um cemitério de Embu das Artes. Em 1985, a polícia alemã suspeitou e interceptou uma carta enviada pelo casal austríaco Wolfram e Lisellote Bossert, que acobertou o carrasco no Brasil, para um ex-funcionário da família de Mengele.

A Polícia Federal em São Paulo, então, passou a auxiliar as investigações e descobriu que os Bossert havia acobertado a identidade de Mengele e, inclusive, o abrigado em uma casa no Brooklin, zona sul de São Paulo, e auxiliando-o a se manter recluso em Eldorado, à beira da represa.

Em 1985, o corpo de Mengele foi exumado. Sete anos depois, um teste de DNA confirmou o laudo médico, feito pelo Instituto Médico Legal de São Paulo (IML), de que a ossada realmente era do nazista apelidado de “anjo da morte”.

Segundo as autoras, a liberdade de nazistas como Mengele e Barbie na América do Sul foi proporcionada tanto pelos governos ditatoriais da época quanto pela hospitalidade de migrantes europeus, como austríacos, húngaros e alemães que já estavam aqui.

Alguns conterrâneos sentiam-se lisonjeados por recepcionar um oficial dos tempos de guerra em novas terras. “Em resumo, algumas dessas pessoas passavam pano”, resume Betina.

Segundo a jornalista, Mengele minimizava os próprios crimes. Entre eles, o de submeter gêmeos a condições extremas de tortura para ver a distinção entre as reações físicas de cada um, ou a tentativa colorir a íris de vítimas com a injeção de produtos químicos nos olhos para “decifrar” a perpetuação de características para aprimoramento da raça ariana.

A brutalidade de Mengele e Barbie criou uma mitologia a partir da produção de livros, filmes e documentários. No caso de Mengele, a “fama” passou a gerar incontáveis pistas falsas sobre as supostas aparições que dificultaram a vida dos investigadores.

Os regimes da América do Sul também viam vantagem nos quadros nazistas. “Havia um interesse na ‘fuga de cérebros’ da Alemanha nazista pelos governos autoritários à época, tanto na América do Sul quanto nos Estados Unidos, de cientistas a militares e fabricantes de bombas”, afirma Betina.

Surazo, por exemplo, também narra brevemente a trajetória de Hans-Ulrich Rudel. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, o condecorado piloto de caça auxiliou na fuga de Mengele, assessorou a presença de empresas alemãs na América do Sul e transportou armas para Augusto Pinochet, no Chile, Alfredo Stroessner, no Paraguai e, por fim, para o ditador boliviano Hugo Banzer.

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Em sentido horário: Legista Wilmes Teixeira e delegado Romeu Tuma monstram restos mortais de Josef Mengele para a imprensa em 1985; foto do criminoso de guerra no Brasil; crânio de Mengele na Escola de Medicina da USP, em 2017 Foto: Reginaldo Mantente/Estadão; Oswaldo Jurno/Estadão; Leonardo Benassatto/Reuters

“Os antigos oficiais nazistas estavam interessados em oferecer serviços de inteligência durante a Guerra Fria. O apoio dos governos autoritários de extrema-direita como bastiões contra a esquerda e uma suposta ameaça comunista protegeu pessoas como Barbie, ou até a remunerar como consultantes para a chamada ‘contra insurgência comunista”, explica a autora austríaca.

A verdadeira identidade de Barbie foi revelada em 1971 pela dupla Serge e Beate Klarsfeld, que tiveram parentes assassinados na Segunda Guerra e que bancaram do próprio bolso uma investigação para encontrá-lo e levá-lo a julgamento a partir de uma dica de Monika, guerrilheira morta sob o comando da ditadura boliviana.

A descoberta ganhou repercussão mundial. Pressionada, a ditadura prendeu Barbie em La Paz por “problemas fiscais” no início dos anos 80.

A prisão tentava impedir um sequestro por guerrilheiros para levá-lo ao Chile, então comandado pelo esquerdista Salvador Allende, ou uma extradição para o julgamento na França – durante a invasão nazista em território francês, Barbie ganhou o apelido de “Açougueiro de Lyon” devido à tortura imposta contra judeus e membros da resistência francesa.

O nazista só foi extraditado após a retomada da democracia na Bolívia e condenadoem 1987 à prisão perpétua por crimes contra a humanidade em um tribunal na França. Em 1991, Barbie morreu vítima de câncer em Lyon.

De acordo o Museu do Holocausto, mais de seis milhões de judeus foram mortos pelo nazismo de 1933 até o fim da guerra, em 1945. Apesar disso, a autora de Surazo afirma escrever para demonstrar que os efeitos do antissemitismo e do racismo perduraram com o baixar das armas.

“O conhecimento dessas histórias entre o grande público faz diferença para nossa memória e cultura: nós, europeus, temos que saber que o nacional-socialismo não acabou em 45 e que devemos estender nossa responsabilidade sobre o tempo e os lugares por onde ele se espalhou”, conclui.

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